Quem passeando, distraidamente, pela rua ou mesmo apressada para uma reunião de trabalho nunca ouviu alguma frase do tipo: “Ei gatinha, tudo bem com você?”, “Nossa não sabia que boneca andava!”, “Mas que princesa! Muito maravilhosa” ou ainda algumas mais ousadas como, por exemplo, “Gata vamos brincar de nuvem, eu fico nu e você vem”, dentre outras.
Tais frases, vulgarmente, conhecidas como “cantadas”, fazem parte do cotidiano de toda e qualquer mulher, seja ela menina moça, mulher adulta ou até mesmo sexagenária.
O universo e o nosso país em especial é machista, de forma geral, e o homem sempre reservou para si o papel de galanteador sendo o protagonista na arte de conquistar, assim, na maior parte das vezes as cantadas provêm deles, dos mais simples como àqueles que trabalham nas ruas em obras públicas uniformizados, até os mais sofisticados executivos muito bem vestidos que compartilham meios de transporte público, como metrô e ônibus, juntando-se à massa de pessoas que circulam pela cidade diariamente.
Somando-se a isso nosso clima tropical favorece a utilização de vestimentas mais leves que acabam deixando à mostra boa parte dos nossos corpos, sendo um chamariz para algumas abordagens mais invasivas e até constrangedoras que transcendem a esfera do simples elogio ou inocente flerte.
O mais importante é observarmos a reação de quem recebe a cantada, pois por mais que seja sob a ótica de terceiros considerada razoável, aceitável e até capaz de massagear o ego de algumas mulheres, caso a pessoa a quem é dirigida se sinta ofendida já é o suficiente para que ela possa tomar algumas providências, inclusive, sob o ponto de vista criminal.
O nosso Código Penal Brasileiro prevê como criminosa a conduta de que quem ofende a honra subjetiva de outrem, atribuindo-lhe qualidades negativas, conforme o artigo 140 que tipifica o crime de injúria. Define-se honra subjetiva como o sentimento que alguém possui de si mesmo, diferenciando-se da chamada honra objetiva que se traduz na forma como os outros enxergam determinada pessoa, ou seja, como é sua reputação no contexto social.
Então para a caracterização do delito de injúria é preciso que a ofensa vulnere a dignidade (respeitabilidade ou amor-próprio) ou o decoro (correção moral ou compostura) de alguém, tratando-se de um insulto que mácula a honra subjetiva, arranhando o conceito que a vítima faz de si mesma.
Assim, aquelas pessoas que se sentirem humilhadas com determinadas palavras dirigidas a sua pessoa podem sim procurar uma Delegacia para o registro da ocorrência. Claro que aqui há toda uma dificuldade para se descobrir a real identidade do ofensor, normalmente um desconhecido que cruzou o caminho da vítima em determinado momento, surpreendendo-a.
Então na maioria das vezes, mesmo profundamente abaladas com o que ouviram em frações de segundos e de forma inesperada, muitas mulheres preferem ignorar o ocorrido e continuar seguindo o seu destino.
Importante frisar que caso a vítima consiga pessoalmente ou com a ajuda de terceiros deter o autor em situação de flagrante ou ainda, logo após o fato, acionar a Polícia Militar, todos (autor e vítima) deverão ser conduzidos até a Delegacia mais próxima. Nestes casos desde que a vítima, que teve sua honra subjetiva atingida queira, será lavrado um Termo Circunstanciado, no qual o autor será identificado, qualificado e liberado ao final do procedimento após assumir o compromisso de comparecer ao Juizado Especial Criminal quando intimado.
Saliento que além das conhecidas cantadas que são verbalizadas e mais fáceis de acontecer as ofensas também podem se materializar na forma de gestos, configurando o crime de ato obsceno, como o ato de se masturbar ou simplesmente exibir os órgãos genitais, publicamente.
Hoje em dia as mulheres que são alvo de abusos e assédios estão muito mais bem informadas acerca de seus direitos e várias delas retrucam, de imediato, aqueles galanteios mais desrespeitosos.
Frise-se que por mais que para alguns aquilo possa massagear a autoestima da mulher, caso a pessoa destinatária sinta-se constrangida, já é o suficiente para que ela se insurja contra o ato praticado e busque ajuda.
Percebam que atento e sensível às reclamações de muitas mulheres que às vezes acabam sendo até mesmo tocadas, inadvertidamente, em via púbica, o que constitui um inegável constrangimento, o legislador criou um novo tipo penal previsto no artigo 215-A do CP que trata da importunação sexual com penas que podem chegar a 5 anos de reclusão. Nesse caso o autor pratica atos libidinosos contra a vítima sem a sua anuência, no intuito de satisfazer a própria lascívia. As condutas que ensejaram a criação desse crime foram os inúmeros casos nos quais homens chegaram a ejacular em passageiras no interior de transportes coletivos, algo que até então era considerado apenas uma contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor, atualmente revogada, cuja punição beirava a insignificância, o que ensejava a reiteração de tais condutas, já que o agressor acreditava sinceramente na sua impunidade.
Comportamentos como beijos lascivos, exibição de partes íntimas ou toques não consentidos na vítima com intenção libidinosa não podem ser banalizados e nós mulheres devemos valorizar nossa dignidade e buscar a justiça, sempre que possível.
Lembrem-se de que a inércia favorece a impunidade e a reincidência, então que tal rompermos a barreira do silêncio e agirmos o quanto antes?
Atentem ao fato de que não devemos ficar desviando o nosso trajeto para evitarmos de passar por um canteiro de obras ou por um túnel deserto ou mesmo deixarmos de usar determinadas roupas com receio de sermos importunadas, até porque a liberdade de ir e vir é direito fundamental constitucionalmente garantido. Então o que precisamos é alertar as mulheres de que elas não devem ouvir e guardar aquela informação com um certo desconforto como se fosse algo normal ou natural do nosso dia a dia, já que podemos sim processar esses autores que na maioria das vezes se sentem no direito de continuar agindo da mesma forma, acreditando que nada há de ilícito em tais comportamentos e que jamais poderão ser responsabilizados por isso.
Claro que se a “cantada” é bem recebida pela destinatária nada há o que se questionar, ocorre que na grande maioria das vezes são demasiadamente ousadas e ofensivas.
O termômetro que vai medir o grau de aceitação encontra-se dentro de cada mulher que deverá estar atenta aos sinais emanados de sua própria consciência, isto é, se positivos ou não diante do que se ouve do mundo exterior. O fato de usarmos uma roupa mais sexy ou decotada não significa que estamos disponíveis para sermos assediadas livremente sem que os autores sejam punidos.
A confusão de sentimentos é um ponto comum relatado entre as mulheres alvo das cantadas bem como a dúvida sobre a responsabilidade daquela situação. Algumas acabam se sentindo culpadas pela roupa que vestem e isso não pode acontecer.
Depende de nós mulheres modificarmos essa realidade, às vezes triste, pois se de fato nos sentimos ultrajadas por que não buscar ajuda ou socorro?
Infelizmente, tal problema permeia a nossa cultura então reforçar a educação dos homens, sejam eles nossos filhos, maridos, pais, amigos e vizinhos no sentido de se comportarem de uma forma mais adequada e respeitosa seria um caminho a seguir, demonstrando que o fato de algumas mulheres gostarem de receber cantadas por onde passam não significa que isso possa ser generalizado, já que a grande maioria delas prefere ir e voltar para suas casas em paz, sem sofrerem qualquer tipo de importunação ou abordagem libidinosa.
Fiquem atentas sempre!